E há quem desdiga
desta terra cuja desdita
a ela se agarra como lapa em rocha.
Eu vos digo que é linda.
Quando a olho recortada pela costa abaixo,
cheia de curvas e recônditos escondidos,
feita de montanhas, planícies e cavernas,
todas visitáveis, com deleite, com prazer sensual,
por onde escorregamos e mergulhamos
em néctares límpidos e frescos,
em busca do verdadeiro suco da vida.
Esta terra, que é mulher, que não é nova,
que tem a experiência que o tempo acumula
nas suas curvas e recônditos sensuais,
que foi desvirginada pelo tempo,
mas que devolve ao olhar
o brilho incomparável do desejo inconfessado
do corpo da mulher que o tempo refinou.
A cada um a sua,
contada, recontada vezes sem conta,
estórias que o tempo acama,
em lentas marés de calmaria,
que os homens passam de boca em boca,
com os pormenores que o tempo,
teimoso, tenta apagar.
Estórias que o vento nos traz,
pela boca de quem as viveu,
e que o tempo esbate na memória dos homens.
Estórias que se contam.
Sempre que a via, emocionava-me,
era uma máquina infernal,
disparava em todos os sentidos
e a mortandade era geral.
Bastava para tanto que se carregasse num botão,
como agora se diz, porque na época o nome era outro,
chamava-se-lhe simplesmente tecla,
e dessas teclas se disparavam as mais diversas munições.
Quando se sentava defronte dela já estava preparado
para dar início à guerra, fratricida, total, se necessário fosse,
punha-se a pressioná-las de tal forma, que nada ficava ao acaso,
chegava mesmo a ser violento com elas
na ânsia de atingir os seus alvos.
Uma máquina de escrever, portátil, pois então,
já havia destas coisas,
do seu metralhar de um compasso assustador, firme,
saíam textos de quem sabia escrever, em português, já se vê,
sem acordos ortográficos, que isso são modernices,
para nos fazer esquecer as belezas desta língua universal,
de tal forma certeiros, tão acutilantes que foi, finalmente,
decretado o seu fim, exterminada sem dó nem piedade,
substituída pela ortografia das novas linguagens digitais.
Uma máquina terrível, mais mortífera que qualquer outra,
que de guerra se denomina e apresenta,
mas indissociável da evolução humana,
uma arma de arremesso de quem sabia escrever e pensar,
temida por todos os arautos da incongruência,
os pavoneadores da palavra fácil e mentirosa.
Era aquilo que diferenciava o ser humano pensante,
do que seria o animal cavernoso da obscuridade,
uma arma mortal para quem usava do ardil,
para adormecer as mentes que se recusavam a ceder,
por isso tinha um nome adequado à sua função,
por isso era terrível e se chamava simplesmente,
Máquina de Escrever.
E que bem escrevia, como nos enchia o coração,
quando ouvíamos o seu matraquear
e a alma completava a satisfação, repleta de prazer.
Uma Máquina de Escrever.
Fui entrando naquela que é a sua casa,
procurando por ele, devia estar por ali,
mas encontrei Caeiro,
mais à frente dei de caras com Reis,
sem desistir continuei à procura,
encontrei Campos,
mas de pessoa nem sombra.
E finalmente,
ao encontrar Search num dos cantos da livraria,
descobri que ele estava mesmo à minha vista,
diante dos meus olhos sem que eu o vislumbrasse,
pois Pessoa eram todos eles e mais alguns,
de que nem sequer falei,
nem mencionei.
Mas ali estava ele em todas as suas personagens,
mais maravilhoso que nunca,
um Pessoa desconhecido e cheio de conhecimento,
um doutor das letras que só esteve seis meses na Universidade.
E, no entanto,
o maior poeta português do século XX,
Fernando Pessoa de seu nome,
em pessoa, ou antes, em pessoas,
recebendo-me em sua casa.
A rua deserta, fria e solitária
da noite longa que atravessas,
a parede como suporte,
e o cigarro que vai aquecendo
o corpo já quente que aguarda
um outro corpo, frio e solitário também,
que procura o calor desse teu corpo que ofereces.
Entregas-te a troco de algo, a troco de nada,
entregas-te a troco de quê?
A troco da satisfação da necessidade,
que encontra a necessidade de satisfação
de um corpo frio no teu corpo quente.
Com esses olhos grandes,
de amêndoa alargados,
cabelos de fogo avermelhados,
mãos finas e dedos compridos,
cruzados frente ao rosto expressivo de quem pensa,
e a boca, de lábios carnudos, sensuais,
desejosos de outros iguais,
estereótipo do sorriso franco,
aberto e alargado dos desejos que vão criando,
e nos dentes, ainda, sobressaindo a cada sorriso,
um fio prateado de aparelho dentário.
A ninfeta diáfana da mulher de sensualidade futura.
Através de ti olho este mundo
que me rodeia e arrasta,
que serpenteia entre o gosto e o desgosto,
e saltita, vai não vai, saltita,
cambiando de cor e amor.
E tu, gota de chuva,
que cais sobre meus olhos,
mesmo assim vejo,
pela tua transparência e luminosidade,
reconheço o mundo que gostaria fosse diferente,
cambiando, sim, sempre,
mas para um mundo melhor.
Em cada uma um corpo, inerte a esta hora da noite,
em cada uma um recanto, onde se abrigam,
e em todas elas uma luz que lhes ilumina a noite,
uma protecção frágil que os abriga,
sem que seja uma segurança de abrigo.
É só um resguardo da noite embrulhada nas estrelas que,
do alto do seu distanciamento,
tudo vêem, tudo apreciam, de nada gostam,
mas iluminam os corpos tristes que na sua protecção se abrigam.
E não há mais montras vagas, todas estão ocupadas,
e nós estamos também, ocupados, cabisbaixos,
nada vemos do que se passa ao nosso redor,
mesmo quando por azar, roçamos tão de perto
que não só lhes sentimos a respiração,
como testemunhamos a sua profunda miséria.
Estamos tão preocupados em sobreviver
que não reparamos que outros já se preocuparam também.
E por isso, tantas montras ocupadas,
tão poucas vagas entre elas.
Passam lestos por mim
a caminho de não sei onde,
correm a vida nos pés que se arrastam
sem apreciarem a paisagem.
Passam lentos por mim,
mãos descontraídas,
devagar, sem destino,
que a vida fez-se para se apreciar,
olham, suspendem a passada
e num voltar de cabeça,
abarcam todo um mundo que os rodeia.
Passam lestos ou passam lentos,
mas passam por mim, no Rossio.
Esbranquiçavam-se ao longe,
clareava o dia e os raios solares,
fortes, possantes e quentes,
sentiam-se impotentes,
eram demasiadas nuvens,
apesar das tentativas,
não conseguiam mais que
clarear o dia e esbranquiçar as nuvens.
Caía sobre nós o cinzento-celeste,
e com ele a tristeza da falta do rei sol.
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