Porque tu és onda,
que se revolve cresce e espraia,
e eu a maresia que sobe e desce,
num contínuo movimento,
em que o tempo é esquecido.
Entre o teu revolver,
me contornas e envolves,
em sucessivas imaginações,
dessa tua água salgada,
e eu, em espuma me tornarei,
na praia de nossas vidas.
Cheiras a maresia,
inalo o aroma que vem de ti,
e assim inebriado,
me deixo levar pelo doce vaivém,
das ondulações que me deleitam,
onde outras vidas se darão à criação.
Porque choram os meus olhos,
se os continuo a secar,
de cada vez que uma gota tenta saltar,
para longe do coração?
São talvez os escolhos de uma vida,
que ainda não acabada de viver,
já sente o desespero do nada.
E eu choro,
e sou homem,
mas os homens também choram,
e não é pouco.
Já há sol, passou a sombra,
que escuras nuvens tapavam,
já temos o cheiro característico,
que das ruas e vielas,
nos enchem as narinas,
sardinhas e castanhas assadas,
alecrim nas janelas,
dos velhos becos sai o seu perfume,
que enchem o ar da velha cidade.
Cheira bem,
cheira a história,
cheira a modernidade,
cheira a Lisboa.
O que sinto quando as notícias me dizem,
que alguém se queixa, indignado,
porque uns mendigos vivem debaixo dos viadutos,
rodeados das tralhas que a vida lhes deixou como prémio?
Vergonha!
Porque gente que se senta no quente das suas lareiras,
ladeada pela comodidade que o dinheiro paga,
protegidos da chuva e do frio,
devia ter vergonha de fazer estas denúncias.
Será este o mundo do futuro de que tanto se fala?
Serão estas as pessoas que pontificarão nesse,
longínquo e tão próximo universo?
Não quero estar presente,
não quero participar nesta falta de solidariedade,
tenho vergonha deste País que assim procede,
tenho muita vergonha desta gente que o habita.
Quando a revolta da tristeza se impõe,
sobre a alegria de viver a dignidade que nos consomem,
que nos resta senão a indignação,
com que temos de enfrentar,
os algozes da nossa forçada degenerescência.
Debruçado sobre o mar,
olhava ao longe o infinito,
e na mansidão do oceano,
revia-me em ondas revoltas,
que a vida é mesmo assim,
mansa por vezes,
revolta em outras ocasiões,
mas sempre apaixonante.
Deitado de barriga para baixo,
abro o livro e desfolho as primeiras páginas,
entusiasmo-me com as primeiras letras,
e ávido delas embrenho-me na sua compreensão.
Esqueço o mundo que me rodeia,
vivo a aventura da escrita,
e transformo-me naquilo que gostaria de ser,
sobretudo feliz,
viver com dignidade,
não ter faltas e muito menos conhecer a fome.
Nos livros, tudo se transfigura,
nos livros não matamos a fome,
que nos comprime o estômago,
mas alimentamos a alma,
que nos transporta para mundos melhores.
Entra discretamente e vai-se assenhoreando do espaço,
acabrunha-nos, amachuca mesmo,
por mais que o tentemos não a conseguimos afastar,
e então fechamo-nos numa concha de tristeza,
a preocupação começa a ganhar lugar à esperança,
o desespero galopa sem freios,
o optimismo desvanece-se e foge de nós,
e a alma entristece-se com o nosso desespero,
Dormia a cidade no sono dos justos,
acordada aqui e ali,
pelo apelo ao divertimento e,
acessoriamente,
pelo desejo de extravasar a aversão,
ao adversário, fosse ele qual fosse.
Amodorrados pelos passeios nos centros comercias,
pelo incentivado som dos estádios de futebol,
pelas acaloradas discussões sobre qual o melhor,
do mundo e arredores,
o rei do pontapé na bola,
não se deu caso de que,
enquanto se mantinha anestesiado,
a cidade ia morrendo lentamente,
e com ela soçobrariam a prazo.
Do que falo quando falo de relógios?
Falo da alma,
daquilo que o passado representa,
para quem dele quer fazer futuro.
Dois relógios é o que tenho,
não por serem como os outros,
marcarem horas, mostrarem calendário,
nada disso me interessa nestas peças,
o importante é a quem pertenceram.
Um deles ao meu avô,
grande, com tampa, de bolso e com cordão,
o outro ao meu pai,
mais moderno para a altura,
automático, com calendário,
bastava mover o braço para lhe dar corda,
umas preciosidades.
Não porque valham materialmente,
mas porque para a alma não têm preço.
São objectos de vida,
de vidas passadas,
de vidas actuais e futuras,
objectos da alma,
são dois relógios com saudade dentro.
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