Sem que fosse forçado, de vez em quando,
vinham-lhe à memória episódios passados
quase esquecidos e remetidos para o escuro de um sótão.
Sentia ainda os primeiros raios solares,
do alto do seu 12º andar,
espraiando o olhar sobre a cidade,
apreciando o movimento do início do dia.
À noitinha era deleitar-se com o sol,
deitando-se guloso sobre aquele corpo que,
ora calmo ora alterado por prazeres mil,
se revolvia debaixo do seu peso
recebendo-o no seu seio para uma noite de descanso
e de cada encontro, entre amarelos e avermelhados,
o céu recebia espantado as cores vivas desse embate de titãs.
Eram os dois momentos mágicos do dia,
o amanhecer e o anoitecer,
donos de uma experiência única,
só possível a quem tinha África no coração.
Com os tempos em acelerada mutação,
ainda que as janelas e paredes fossem violadas
por inúmeros orifícios de tracejantes balas
e a vozearia ofensiva aumentasse,
continuava a sonhar na sua varanda e via
o nascimento e o ocaso diário do astro rei e,
o radioso nascer de uma Nação virada ao mundo.
Um dia deixou de ir à varanda,
não mais se preocupou com o nascer ou deitar
de um sol que já não lhe dava o prazer de outrora,
sentia que tudo se tinha tornado cinzento,
a luz da cidade que amava foi-se esbatendo
e desse intenso nevoeiro caído sabe-se lá de onde,
que nem friorento dia de “cacimbo”,
surgiu o ódio, a soberba, a vingança, o irracional.
Nesse dia tão negro como tantos que o seguiram
por anos que os dedos já não serviam de ábaco,
morreu-lhe a esperança de vez,
abandonou a varanda e os elementos que a adornavam,
meteu apressadamente na mala o que lhe restava,
três camisas, dois pares de calças e os documentos identificativos,
rumou ao mundo, a outro mundo que não o seu,
perdeu-se de esquecimentos pela terra que o viu ser homem.
Numa noite iluminada pelo ecoar da metralha,
subiu as escadas de um avião sem olhar para trás,
sentou-se onde o determinaram e fechou os olhos,
abriu-os horas depois, num outro universo que não conhecia,
aquele que nunca quis conhecer, mas que agora ali estava,
frio, chuvoso e ameaçador para quem vivia com o sol.
Antes mesmo de poisar um pé sobre essa terra desconhecida,
que ora o recebia no seu abraço traiçoeiro,
por entre os pongos da chuva que o encharcavam,
deixou cair duas lágrimas que inundaram a cidade,
esgotou o coração e da alma retirou a felicidade.