Era uma tarde como tantas outras tardes,
o calor atrevia-se por entre as ervas suadas
onde gotículas de água,
vindas não se sabe de onde,
verdejavam o prado quente.
Nesta imensidão de calor destravado,
por raios inclementes de um sol
em busca do seu próprio tempo e
do verão onde estacionaria algum tempo,
sentia-se o trinar dos melros apavorados que,
de arbusto em arbusto,
de ramo em ramo equilibrados,
saltitavam esvoaçantes em fuga do destempero do tempo,
em busca de alimentos que apesar de tudo
seria o seu sustento, a sua ponte para a vida.
Tinha dezassete anos e era órfão de pai!
Obrigado desde cedo a trabalhar para se sustentar e viver, ali estava, a setecentos quilómetros de casa, longe de uma mãe que se tornara guerreira pelas agruras da vida e de um irmão que, sendo mais novo, logo teria de se atirar à luta também!
Eram os tempos da solidão e desespero, eram os tempos em que a segurança social não existia, eram os tempos em que o melhor podia aparecer com o recrutamento militar, eram os tempos mais negros que se podiam viver!
Instalado num modesto quarto de pensão de quarta categoria, ali tinha o seu pequeno e restrito mundo que, mesmo sendo pequeno, não o iludia quando ao regressar do trabalho o via remexido e revoltado pela perícia dos inquisidores que procuravam e não se cansavam de o fazer. Porque simplesmente tinha um amigo que era um alvo referenciado e, como tal, também o poderia ser!
Durante alguns anos, três, mais precisamente, ali comemorou os aniversários, longe de todos os seus, longe de tudo, cercado pelo silêncio mais atroz que se possa imaginar, sem festas, sem bolos de aniversário e as únicas velas acesas eram as da lâmpada do tecto que mal iluminavam o aposento.
Num pequeno rádio de pilhas ouvia alguma coisa do mundo, o que permitiam, claro, e deitado sobre a cama sonhava que um dia, um qualquer dia desta vida, as coisas poderiam vir a ser diferentes, até poderia vir a ser uma pessoa como as outras que ali deitado sonhava.
Nesses momentos ouvia música e ficou-lhe na memória uma que acabara de ser lançada, “A day in the life”, pelo agrupamento que havia de ser reconhecido mundialmente como “The beatles”.
Como essa música o marcou, como ela o acompanhou, sempre na esperança dos dias sonhados e melhorados em função da música!
Eram os dias tristes e acabrunhados de quem tinha de fazer pela vida, mesmo sendo ainda menor de idade porque nessa altura a maioridade era aos vinte e um anos!
Eram os dias do fim de uma meninice que havia sido feliz, eram os dias do tormento, do silêncio e da solidão atroz que jamais será esquecida!
Era o início de mais quatro anos sem retrocesso, numa guerra que não devia ter sido!
Vidas marcadas pelo destino incontrolável!
Sem culpados, sem lamentos, sem remorsos, sem nada de palpável que nos alegrasse os dias, só a vida em toda a sua robustez!
Luis Filipe Carvalho
Exalam do seu interior,
voláteis e esparsas colunas,
de um fumo aromático,
a café quente, torrado, sensual.
Dessas colunas me sobressaem,
nas asas da minha fértil imaginação,
os imensos terreiros em verde e vermelho pintados,
das cores das imensas bagas espalhadas,
do café que, colhido se prepara ao sol,
para o repouso que o secará.
E cânticos que se repetem,
em sons guturais e sucessivamente entoados,
por quem daquela vida fazia vidas,
e em cada bago daquele grão do prazer,
com que os homens se deleitam,
ou se escondem por trás do seu fumo,
via uma vida dura e exigente,
mas de uma simplicidade desconcertante.
Chegavam em grupos, aos magotes,
asas abertas à liberdade que a idade lhes permitia,
e a saudade ausente lhes assegurava,
como tributo à amizade celebrada.
Falavam entre si, entre todos,
conhecidos, amigos ou simplesmente presentes,
gratos pelo ajuntar dos anos passados,
num momento único, o encontro anual.
Um encontro da saudade com a amizade,
do carinho da distância, com o mais puro prazer,
de uma presença que se sente,
palpável e calorosa na aproximação.
Os decibéis a aumentar, e os corpos a pedir,
balanço e embalo envolvente e um abraço quente,
dos trópicos feitos Europa, e nele se deixam ir,
em sorrisos mil vezes calorosos.
E assim,
julgando ser o único,
que não mudava,
que não prestava,
face aos actuais padrões,
ainda mantinha princípios,
que para nada já contavam,
deixei-me desvanecer nesta dúvida,
que de existencial nada tinha,
mas que significava a nova existência.
Depois, conheci outros,
com os mesmos sintomas,
sofrendo com os mesmos padrões,
concluí que não estava só.
O complexo universo onde nos movemos,
tem estrelas em ascensão,
que para melhor brilharem,
têm de ofuscar as existentes.
Esta era a tarde que como todas as tardes,
tardava em brilhar ao sol escondido,
esta era a tarde que como tantas tardes,
fervia no sangue dos injustiçados,
esta era a tarde que como tantas tardes,
enchia as ruas do protesto singelo,
de quem só pela voz se faz ouvir.
Esta era a tarde que como tantas tardes,
passadas no refúgio da história da Pátria,
criaram as sementes da revolta,
pela infame flor de lis cravada em seus corações.
Esta era a tarde como tantas tardes,
que ainda podia ser diferente,
esta era a tarde em que poderíamos ter assistido,
ao relançar da inteligência, da sabedoria,
de quem quer contar com os seus cidadãos,
não para os espezinhar e amesquinhar mas,
para os tornar seres humanos, responsáveis pelo futuro do País.
Esta é a tarde que marcou mais uma ignomínia,
Sobre o povo que tão mal tem sido dirigido.
Liberta-te dessas correntes que te prendem ao chão,
eleva-te homem, ganha asas e voa,
deixa para trás o que te atormenta,
esquece os maus momentos,
engrandece os bons e,
quando te sentires leve o suficiente,
abre essas asas que só o consegue
uma alma do tamanho do universo,
e sobrevoa, bem no alto,
toda a tristeza que te envolve.
Fui formiga,
não me transformei em cigarra,
e com a dificuldade do peso das coisas,
nem como formiga me encantei.
Tremoços,
ao lado uma loirinha,
fresquinha e espumante,
no ar, o calor do verão,
sentindo-se abrasador,
no coração,
a calma e o sentimento,
de uma perene felicidade.
Espero ter tempo,
para um último gin tónico,
para um charuto de despedida,
para um adeus às plantas e flores que me rodearam,
para me despedir das minhas princesas,
e finalmente assistir ao repousar do sol,
até que definitivamente se deite.
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