É que às vezes, demasiadas acho eu,
sinto-me mesmo só, ainda que no meio da multidão,
mesmo com o ruído insano e elevado
que me envolve e eu ignoro estoicamente
por necessidade do isolamento que a mente,
castigadora e severa me impõe.
Nessas alturas, tantas que são,
ouço a alma que me segreda
coisas de espantar e conselhos,
tantos são que não consigo segui-los,
mas a alma, essa gestora de mim,
dos meus momentos, dos meus silêncios,
obriga-me à castidade mental,
e eu sinto-me, muitas vezes,
tão só, neste mundo repleto de gente.
À volta o ruído impróprio,
quando se quer silêncio,
quando se procura inspiração,
quando se quer escrever,
quando a alma intenta poetizar.
São chávenas e copos, são pratos e talheres,
tudo bate, tudo cai ou,
é atirado sem parcimónia,
para recipientes de lavagem,
ou mesmo de reciclagem.
Mas ao fundo da sala,
da mesa mais distante e recatada,
sai um ruído diferente,
e o que foi incomodativo se transforma,
em surpresa pelo agradável que era,
tão somente ligeiro e humano,
um choro de criança.
Que agradável momento.
Esquivas-te pelas esquinas da vida,
nas ruas que percorremos
procuras os vãos que te acoitam
e passas despercebido
aos olhos que não querem encontrar-te.
No deambular pela cidade
quase não dão por ti,
mas estás lá,
em cada esquina da vida,
em cada esquina da cidade,
em todas as esquinas
que a vida madrasta te oferece.
Não vêm, porque não querem,
assusta-os poisar o olhar em ti,
horroriza-os saber que são cada vez mais,
que podem vir a ser um deles
e desviam o olhar pensando que
assim se afastam do flagelo.
De manhã sai de casa,
de bicicleta se aventura
e pela cidade vai pedalando,
em Lisboa,
a deusa da bicicleta,
pela manhã,
que à tardinha,
quase a juntar-se à noite,
a deusa do pedal
qual Cinderela se transforma
na deusa do desejo
que na noite que se avizinha,
atormenta a libido,
desperta a imaginação e
acompanha os sonhos
que iluminam esta escuridão
e alimentam a solidão.
A noite cai com uma abundância do silêncio
que procuramos incessantemente,
e de repente,
sentimos que nos agride,
que afinal,
tanto silêncio
nos deixa sós.
E fechamos os olhos
na tentativa de o afastar,
mas já não é possível.
Chegou,
instalou-se e não nos larga.
Dormia já parte da cidade,
ao balcão pedias uma sopa com que confortarias o estômago,
para a noite que não permitiria o sono do descanso,
pediste um café e tinhas assim composto a refeição.
Uma sopa e um café.
Pagos já com alguma da receita da noite,
e ainda havia tanta pela frente,
Na tua idade?
Quando devias estar no remanso de uma quente cama,
ainda labutavas pela noite fora,
servindo quem de ti se servia sem saber que,
pela noite fora tinhas por companhia uma simples sopa,
e um café para te manter acordada,
para atender tantos clientes que,
apesar da tua avançada idade ainda te procuravam.
Mundo cão, país infecto que permite tais aleivosias,
que vira a cara de nojo para não te encarar,
e na próxima esquina te procura para de ti se utilizar.
Quando a noite cai,
com o peso da escuridão,
duas lágrimas de orvalho,
frias, solitárias e brilhantes,
resvalam da folha pendente,
de que o dia guardou o verde.
E a noite, calma e serena,
escuta a sua queda,
num silencioso ribombar.
Duas gotas de orvalho,
vergaram a folha,
que se agarra à árvore da vida,
mas não segurou o orvalho.
Floriram e espalharam-se por toda a cidade,
foi Abril e floriu,
abriram-se as portas que se fechavam,
na masmorra da memória,
soltaram-se os cravos, vermelhos,
e eram raivas, sonhos em mutação,
caminhando por ruas e ruelas,
levando a nova a outros recantos,
trazendo em troca,
alegrias e tristezas, envolvimentos e abandonos,
mesmo que outros jardins murchassem,
era Abril e a primavera floria.
Hoje vou deitar-me num colchão de nuvens,
alvas, na escuridão da noite,
porque está fria,
hei-de cobrir-me de um manto de estrelas,
tão brilhantes e luminosas,
que me embalarão o sono.
Porque a noite é serena,
e amena, mesmo com frio,
consigo traz o silêncio que induz à reflexão,
deixarei voar o pensamento,
e por entre sonhos e aspirações,
encararei o novo dia, como novo.
Nem bom nem mau, diferente,
porque é primavera,
porque chove a cântaros e não devia,
já era tempo de o tempo estar ameno,
apetecível para calcorrear as ruas da cidade,
quente para aquecer os corpos,
o nosso e os outros a que gostamos de deitar o olhar.
Já era tempo que este tempo invernoso,
agitado e molhado, se aquietasse e,
por uns dias que fosse nos desse uma primavera,
daquelas de que ainda nos lembramos, a sério,
cheia de passarinhos a chilrear, flores a desabrochar,
e o sol, esse sol que tanta falta faz,
a fazer-nos tremer do prazer de sentir o seu calor.
Que maravilha de sensação sentir o corpo a aquecer.
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