No céu recortava-se a borrasca
em forma de pesadas nuvens negras,
mais próximo, junto a terra,
debruavam-se o cimo dos montes
encabeçados pelo nevoeiro opaco,
aqui e ali coroados de branco.
Na terra que calcávamos,
molhada pela chuva constante,
alagada pelos imensos lençóis de água,
distinguíamos ao longe,
bem para lá do que a vista alcança,
muito além do esticar de um braço,
a monumental catedral de Tuy
encimando as casinhas circundantes,
minúsculas quando daqui as olhamos,
e para lá chegar em corpo o rio Minho e a secular ponte
de ferro forjada e cinzento pintada,
e por cima, até ainda passa, o comboio.
Quando pretendes dizer-me exactamente o contrário,
de tudo o que aos olhos me saltam,
isso é retórica,
quando tentas fazer valer a tua verdade,
contra toda a evidência,
isso é retórica,
quando me queres convencer,
que tens a razão em tudo o que dizes,
isso é retórica,
e eu nada vejo com o que tu argumentas,
e bem tento entender as tuas razões,
mas está a tornar-se muito difícil,
é que a tua retórica não passa disso,
retórica.
Diz-me porquê?
Se tens uma opinião que eu defendo como um direito,
porque não hás-de aceitar que tenha uma também?
Diferente, eu sei, mas é esta riqueza
que nos transforma em seres pensantes,
com olhares diversos sobre o mesmo objecto,
com experiências distintas,
com vidas divergentes
mas com o direito a exprimir cada um o seu.
Porque no dia em que acontecer
que uma opinião se sobreponha a outra,
que tenha mais valor uma que outra,
ou que tenhamos todos a mesma,
então sim, temos a certeza que esse dia,
marcará inexoravelmente o retrocesso
de mais de quarenta anos de que queremos fugir,
pelo menos os que ainda têm memória
ou que dela façam uso para reescrever o futuro.
Partilho das angústias
de tantos que as sentem na pele
de outros tantos que as receiam,
e vejo o mundo que à minha volta
se transforma numa coisa inexplicável.
E o homem que deveria ser um ser racional
movido pela paixão das causas que engrandecem o mundo,
recolhe-se ao rincão da nulidade traição,
e procura em cada momento sobrepor-se
a todos os que o rodeiam sem a malícia do mal
que se desenvolve em mentes retorcidas,
gabadas de universidades cursadas,
mas esquecida das correntes que à vida dão vida.
Parto, parto hoje e deixo aqui,
bem expresso que o faço sem querer,
sem intenção, mas com obrigação,
outros momentos me aguardam,
outras sensações me esperam,
nesta distância que agora começa,
haverá momentos de desespero,
de saudades mesmo,
mas também e certamente,
momentos de pura loucura,
em que só o amor pode reinar.
Não sei se estou aqui olhando o que não quero,
sei que procuro um olhar,
e se nessa procura o encontrar,
sei que não foi em vão o meu,
porque nesse momento em que as pálpebras
ofuscadas se fecharem e abrirem,
foi encontrado o propósito da vida,
e nesse momento o amor fala mais alto.
Sinto que viajo no tempo,
vogando sobre nuvens,
ora escuras e carregadas,
ora claras e calmas,
sou isso mesmo que me sinto,
um viajante de um tempo que não controlo,
um viajante sem passaporte,
que circula nesta atmosfera
onde há tanto tráfego,
e eu já não pertenço a este sururu,
que me quebra a alma de penas por cumprir,
que me devasta o coração sem rumo.
Senti o ruído da cabeça do fósforo,
raspou ao de leve na superfície áspera da caixa,
acendeu-se à velocidade da luz e dela fez iluminação,
aproximei-o com cautela da vela, virgem ainda,
que o aguardava na serena pacatez da cera que a compunha,
ao seu pequeno pavio encostei a minha chama intensa,
acendi-o, iluminou-se, contorceu-se um pouco,
mas a vibrante chama com que me mimoseou,
iluminou minha noite e estonteou-me a memória,
já não me lembrava como as velas acendiam,
como se contorciam os seus pavios,
mal o fogo intenso se lhes chegasse e as iluminasse,
mesmo que isso significasse queimar-lhes o pequeno pavio.
O cristal que deveria ser transparente e brilhante,
serviu de mote ao que seria uma noite de horror,
e nela se inscreveram, nas páginas da história,
o início da perseguição oficial aos judeus alemães,
nela se escreveu que aqui começava algo inexplicável,
que homem nenhum de bom senso desejaria ver,
o holocausto,
o extermínio de outros homens,
em sentido lato,
que no restrito, eram crianças e mulheres também.
Por ironia do destino se chamou a esta
a noite dos cristais quebrados,
a noite da violência extrema,
a noite em que o horror saiu à rua vestido de civilização
e em que foram espancados, presos e deportados,
encerrados em campos de concentração,
milhares de homens, mulheres e crianças.
O seu único crime, serem judeus.
O homem não tem limites
no horror e sofrimento que causa a outros,
mas por favor,
não esqueçamos esta barbaridade,
que jamais poderemos permitir que se repita,
como um buraco escuro na história da humanidade.
Não, não é uma data qualquer,
é a data em que foi descoberto ao mundo
o maior dos horrores de que o homem é capaz,
matar, mutilar, exterminar mesmo o seu semelhante.
Qualquer descrição será sempre benéfica
face ao horror de quem suportou estas selvajarias,
e o homem fê-lo,
em nome de qualquer coisa,
em nome de uma pureza de raça que,
se o fosse, nunca tal coisa consentiria,
mas o homem fê-lo.
E eu, homem, pergunto-me, porquê?
Se tens à frente o teu semelhante,
um homem como tu,
que diferenças encontras para te transformar,
no animal que nem os animais querem por perto?
Afinal que homem és tu que matas outros homens,
que ser humano és que não conheces a humanidade,
tu, homem que caminhas nas trevas de uma vida de ódio,
de vingança e violência com os que te são mais fracos, pára!
Olha para o alto e segue o exemplo que a história nos traz,
trata o homem como homem,
como ser humano que tu és também.
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