Esse teu rosto sem idade,
sulcado pelos agrestes ventos da vida,
lavrado em profundos canteiros de rosas
pelo vento que o açoitou.
Esse teu rosto marcado,
pelos sonhos que nunca realizaste,
pela dureza que a vida te impôs
no caminhar que o tempo já esqueceu.
Esse teu rosto ímpar,
no contar de estórias inenarráveis
que os anos tornaram irreais à luz que hoje brilha,
que são o testemunho vivo da história que vivemos.
Esses teu rosto risonho,
que tudo viu passar,
que perdoou os males a que não pode fugir,
que sorri, apesar de tudo.
Esse teu rosto vivido,
que traz sulcado a traços profundos,
o mapa do mundo por onde andaste,
os caminhos que calcorreaste.
Esse teu rosto bondoso,
que assistiu a um mundo e acaba noutro,
que merece respeito e recebe despeito,
que tudo faria para saciar os insaciáveis.
Esse teu rosto que eu respeito,
e ainda que os ventos da modernidade,
imberbes e ignorantes,
propalem o contrário, agradeço,
pelo futuro que teu sacrifício me deu.
Deixo-te esta noite uma prece,
peço-te que nos olhes do alto do teu celeste trono,
e nos perdoes pelos males do mundo.
Não te admires de to pedir,
sou humano,
conheço-os há longo tempo,
sei do que são capazes.
Também te conheço,
sei que és Pai,
generoso e protector.
Rogo-te pois, que os releves,
perdoa-lhes os pensamentos impuros,
sobretudo pelos males com que se autoflagelam.
Ali onde o dia se desfazia da noite,
naquele preciso ponto,
no momento em que se fazia a luz,
nas trevas que a noite criava.
Num instante de sublime elevação,
numa concertada loucura do universo,
os extremos juntam-se para logo se separarem,
e deste encontro de titãs renasce a vida,
diariamente,
em todo o seu potencial esplendoroso,
para o bem e para o mal.
De onde estava sentado,
apreciava o laborioso trabalho,
e via-a suspensa no ar,
em acrobacias inacreditáveis.
Subia e descia,
umas vezes lentamente,
outras mais apressada,
ia e vinha,
tecendo um misterioso mundo só seu.
Aí nasciam hexágonos,
que a partir de um ponto se multiplicavam,
e a teia de seda desenvolveu-se para cumprir o seu fim.
É uma sensação estranha,
não consigo defini-la,
um misto de alegria e apreensão.
Uma alegria por ter nascido tão naturalmente,
uma apreensão pelo desconhecido de quem o vai ler,
se gostam, se não gostam,
se é bom, se é mau,
não sei, dirá quem o ler.
Para mim foi bom, foi excepcional,
mesmo sabendo que,
a partir do momento em que veja a luz do dia,
deixará de ser meu,
será do mundo que o rodeia,
das pessoas que por ele nutrirem algum carinho.
Mas é um livro de poesia,
um livro que não segue as regras,
que se centra nas palavras que a alma cria e o coração dita.
O meu livro de poesia.
Queria ir e ao mesmo tempo não o queria fazer,
queria sentir o sabor da maçã,
mas ao mesmo tempo,
temia a experiência da serpente.
Mas o desejo,
a sensação da aventura,
o escorraçar das contingências sociais,
desafiá-las mesmo,
e sobretudo o desconhecido
que uma serpente pode proporcionar.
Queria ir e ao mesmo tempo não queria,
acabou por ir,
provar a maçã,
sentir a serpente enroscar-se em si,
desejar que este fosse o paraíso eterno.
Encontrara-a por acaso,
num almoço,
deitei-lhe para cima a esquina do olhar.
Não parecia uma náufraga,
não a vislumbrava a afogar-se,
num qualquer lago profundo,
olhou-me,
e o seu olhar semicerrado não se propôs a coisa alguma,
mas expôs-se,
um ligeiro tremer de lábios nada dizia
se a minha atenção não estivesse desperta,
mas o cerrar de dentes sobre eles,
logo denunciaram o propósito.
Não era náufraga,
mas sem hesitar propôs o pecado da traição.
E daqui tirei a lição da emancipação.
Num instante de voluptuosa nostalgia
senti despertar em mim
sentimentos adormecidos por tão longa inércia
e cresceu o desejo tanto tempo contido,
como cresceu!
Dele se fizeram lembranças,
recordações de outros tempos,
satisfações mergulhadas na memória
apesar da lonjura da distância e do tempo,
cresceu e avolumou-se.
Senti-me doido,
nervoso,
sei lá como me senti.
Mas sei que nestas alturas,
a caneta corre-me sobre o papel como nunca,
e escrevo,
escrevo poesia como se a estivesse a viver no momento.
Nem sequer me detenho a avaliar,
despejo o que me vai na alma,
com a mesma violência com que me aparece.
Questiono-me por vezes,
será que vale a pena?
Será que tem alguma qualidade?
Será que alguém a percebe?
Será que me percebem?
Que percebem esta mente deslocada no tempo,
quase a roçar o ensandecimento?
Dias de doidice, nada mais.
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